Série "Os 30 são os novos 50"
Quando compramos um creme anti-rugas e, uma semana depois, já sentimos os efeitos: uma linha de borbulhas a nascer debaixo dos olhos.
Quando compramos um creme anti-rugas e, uma semana depois, já sentimos os efeitos: uma linha de borbulhas a nascer debaixo dos olhos.
Quando as coisas que dantes nos davam ataques de riso agora nos dão ataques de pânico.
Quando se começa a desconfiar da excentricidade que é a frase ao contrário.
Na SIC Mulher há um programa que consiste em ir a casa das pessoas, sem elas saberem, mudar tudo e redecorar e depois apanhar as pessoas à saída do elevador, espetar-lhes com uma venda nos olhos e surpreende-las com salas, cozinhas e quartos irreconhecíveis. Diz que mudam vidas. E eu fico a olhar para aquilo tudo, estupefacta e impaciente, a imaginar quando é que inventam um Querido Arrumei a Casa.
Arranja-me um emprego
Your call is on hold............ Your call is on hold................
Repetidos, os pontos finais tornam-se reticências.
Um dia deu-me para dizer, como na música, serás o meu amor, serás a minha paz. Podia ter-me dado para comer uma peça de fruta. Sempre me teria feito melhor.
Se fechar os olhos, é como se os abrisse. Sentada no chão de tábua corrida, o Morelenbaum/Sakamoto a misturar a bossa nova, cuidado com a cinza no tapete, esta noite já se entornou uma lata de cerveja e só há mais duas no frigorífico, faço contas às horas e percebo que terei de ir de manhã rapidamente a casa tomar um banho antes do trabalho. Desceste para ir buscar o papel de arroz e a roliça. No seu altar, o Mefistófeles admira o espectáculo das 37 velas acesas. Alguém anda com uma vassoura de um lado para o outro e alguém já se apagou no sofá. Na tua sala, todos temos o nosso canto preferido para adormecer até ao dia seguinte, o nosso espaço com sentido onde acabamos as noites quando já não há nada aberto para o teu “vá lá, só mais uma cerveja” e umas entrelinhas de conversa. Lá em baixo, na cozinha cinzenta, jantou-se as melhores torradinhas e assim inventámos uma nova medida de contar afectos. Qual é o jogo de hoje no terraço – e, neste momento, naquela direcção, está… a… Do outro lado do rio, há uns senhores ainda acordados, as estrelas, mais rápidas que os barcos, passam com os aviões sobre o panteão aceso. Um ano depois, se fechar os olhos, é como se os abrisse.
Há coisas que realmente me irritam. No local de onde às vezes saio, já sem nunca me cruzar com um laivo de sol, e ainda bem porque eu gosto é da sombra, deram-se ordens para acabar com aquele programa onde pululam janelas com pessoas a falar lá dentro, uma coisa escabrosa semelhante a um spa para relaxar a produtividade. A ordem, mal executada como convém e não fere tradições, veio restabelecer a organização laboral e resultou no seguinte acto de justiça social: uns desligaram-se do mundo e estão agora muito mais concentrados em não fazer nada, outros fizeram uns contactos a puxar para o favor pessoal reavendo a versão actualizada e outros ainda não receberam tal euromilhões e foram condenados a usar a versão ainda-o-messenger-não-era-o-messenger-e-não-havia-bonequinhos. Há coisas que me irritam. Levaram-nos o tinto e deixaram a gasosa rosé.
Está no número de 'adoro-te' ou no número de 'odeio-te'?
A resposta acompanha o ponteiro torto da balança. Afasta-se do fiel, num impulso para a esquerda. Faz uma pausa no movimento e fica vencida do lado direito, junto a um número que tinha partido em corrida para o campeonato das contas de somar e dividir. Como se contam os que estão virados do avesso?
Estava escolhida a primeira palavra. E seria a do cheiro a madeira molhada de ruas quentes e cais de geada.
Perguntou-me em que pensava. Disse-lhe que não pensava em nada. "Não pensas em nada?", quis confirmar. E aí hesitei a resposta, estranhando o lugar-comum que nunca me fora incómodo: é que um não sobre nada dá sempre alguma coisa. Quando se nega o nada sai tudo ao contrário. Quis então dizer que não, não era que não pensasse em nada, mas antes que sim, pensava em nada. Baralhei-me em silêncio com a nova contradição: dissesse eu que pensava em nada e a simples presença de uma preposição já me traía o sentido. Teria por isso de dizer simplesmente que pensava nada, evitando dizer onde e que quê, que não, que nada, que isso é já pensar alguma coisa. Enliei-me de novo, perdido do nada, cheio de tudo isto em que nada se lê. Acabei respondendo que não, duvidando já da minha sanidade. E voltei a não pensar em nada.
Este blog está a precisar de palavras novas.
Que há-de ser da mais longa carta
Que há-de ser da longa batalha
Lembrar que nascemos para ser felizes, como diz alguém como ninguém. E às vezes somos mesmo. O resto é apenas a vida.
Tantas vezes fui à guerra
Nunca partilhámos, eu e vocês, a vossa morte. O verbo morrer não se conjuga na segunda pessoa. Não há diálogos com um “olha, quando tu morreste, lembras-te?”. Ou “como é que tens passado desde que morreste?”. E “já estás melhor do avião que te caiu?”
E ele disse - Se fugires, eu vou-te buscar.
Continuo (eu e) a casa por arrumar.
Estou aqui a olhar para a janela. A falta que me fazes tem quilómetros. Tantos que continua a dar voltas ao quarteirão. Ainda agora passou a correr, contornou o Marquês de Pombal e já está outra vez debaixo da minha janela. Não são quilómetros. São milhares de milhas.
Parabéns, meu querido viajante.
You can never hold back spring
You can be sure that I will never
Stop believing
The blushing rose will climb
Spring ahead or fall behind
Winter dreams the same dream
Every time
You can never hold back spring
Even though you've lost your way
The world keeps dreaming of spring
So close your eyes
Open you heart
To one who's dreaming of you
You can never hold back spring
Baby remember everything that spring
Can bring
You can never hold back spring
Tom Waits, Orphans
O tempo vai peneirando a memória. Resta apenas o que se quer que fique, mesmo que a gente o deseje num segredo mal assumido. Assentou a poeira das palavras mal medidas, sossegaram os génios dos gestos excessivos, calou-se o ruído dos desencontros. Sobras perfeita, arestas e tudo. Somos nós quem te reinventa como nunca foste. Ou como nunca te soubemos ver.
Saúdo-te com as tuas palavras. Quase parece que as escreveste para serem reeditadas num dia assim. É a única ideia capaz de me sossegar nestes tempos de destroços, neste dia de velas apagadas. Pediremos desejos por ti. Vale a pena pedir desejos. Por ti. Por nós, sem ti.
Tenho dificuldade em lhes explicar - esta coisa de querer mudar de assunto sem me mudar de ti. Entende que não me quero despedir. Fintar o lugar da tua ausência, enganar as horas a que me faltas. Não aceito menos que a tua memória por inteiro, nem perdoo por menos que uma razão impossível. Queria apenas que a saudade me doesse em paz. Ao menos hoje. Parabéns Jóia. É o teu dia. Será sempre o teu dia.
Ainda não te contei que finalmente lá arranjei coragem de ir ver o novo Scorsese. Já foi há umas semanas, mas depois do medo de ver, veio-me o medo de escrever. Não fui ver o Scorsese, fui ver-te a ti, meu caro. E foi o que se esperava. Logo às primeiras cenas, na revista de comics do Wolverine dentro da mochila de uma das personagens. Scorsese e Marvel, prometia. A personagem era apenas uma criança e ainda não se tinha tornado no polícia-bom-e-polícia-mau-e-as-duas-coisas-e-nenhuma-delas-ao-mesmo-tempo do filme. E continha o mundo na banda desenhada. Passava-se isto ainda quando a criança era criança. E não queria partir se estava apenas a chegar. E no cimo de cada montanha não desejava uma montanha mais alta. E em cada cidade não desejava uma cidade maior. Era naquele tempo em que as montanhas e as cidades são demasiado grandes e o mundo é ao mesmo tempo tão grande e tão pequeno que só as histórias de quadradinhos podem conter escala tão esquizofrénica. Depois o mundo muda e somos nós que ficamos grandes e pequenos numa escala esquizofrénica que não cabe nem nas histórias aos quadradinhos. Mas elas lá ficam, o refúgio seguro, o descanso da viagem interminável em busca do spot perfeito. E não há mundo que nos sossegue. A não ser a estrada para andar, a gente a continuar. As emoções para viver, o prazer. Que raio de mania de descobrir o mundo. Tinha mesmo que ser até ao fim do mundo?
Decidi que isto é um canto e não um lamento, já disse o que sinto agora façamos o ponto e mudemos de assunto. Vou à procura de tema. Volto já.
Os melhores momentos, por definição, estão sempre num pretérito perfeito. Porque só depois de vividos, saboreados e sufragados podem ser eleitos. O medo nasce do condicional, a incerteza do futuro. A solução, estou em crer, está no gerúndio.
Foi a sétima palavra mais difícil de traduzir, de acordo com uma votação de mil linguistas feita pela agência inglesa de tradução Today Translation.
De tanto a observar, já a vi como imagem gráfica. Se fosse engolida por uma jibóia, não seria um elefante mas um horizonte de montanha que sobe, desce em planalto, sobe a pique, desce a pique, sobe, desce e termina num sibilado “e”.
A Sofia foi viver há uns tempos para Macau. Ontem, sem grandes palavras, condensei todas as saudades num abraço que a ia sufocando. Ontem, pela primeira vez, a minha pele tomou consciência de que não nos voltaremos a abraçar. Nunca mais.
Quanto tempo demora o nunca mais? Uma semana? Um mês? Um ano? Eu aguento, juro que aguento. Só preciso de saber quanto tempo demora.
O desmentido chegou, finalmente. Afinal, foi uma tal de Maria João Margarido. Não foste tu. Ficarás ainda alegre por saber que também a notícia da morte dos pais do César - alvísseras aos Céus! -, foi um manifesto exagero. O Sol diz que errou. É verdade que sim. Hoje como há uma semana, errou. E errou até no erro com que justificou o seu acto de contrição. Não percebeu que o mau gosto foi bem mais grave que a incompetência.
Palmilhei hora a hora as chegadas previstas para hoje. Estavam previstos para hoje. Agora sei. Não se confirmaram. E agora que sei?
Dizem que eram perseguidos pela desgraça. É verdade. Somos todos. Todas as semanas. Pontualmente aos sábados, lá está ela nas bancas.
Um dia alguém numa grande cidade longínqua dirá que morri
Porque mais não posso, resta o principio.
Esmeraram-se nos efeitos especiais, avião e montanha e tudo, deve ter ficado uma pipa de massa, bem diziam vocês que a viagem estava a ficar caríssima. Mas devo dizer que é um filme de acção de péssimo gosto, muito fogo de artifício, lindos cenários, mas o argumento é de fugir. Planos cortados, erros de racord, francamente... Que raio de realizador arranjaram? O Shyamalan não é, que já passaram tantas horas e ainda não se deu twist nenhum, daqueles bons que surpreendem toda a gente até vocês os dois que têm a mania que são espertos e descobrem tudo às primeiras cenas. Está a ser um falhanço de público, não há uma única pessoa que esteja a gostar de ver. Ouviram? Nenhuma.
Acontece quando estou no silêncio da casa onde nunca foste, quando percorro sozinho o caminho que nunca andaste, quando aqui chego àquela hora solitária a que nunca estavas. Curioso. É precisamente nos lugares onde nunca te vi que a tua ausência mais me pesa.
Não vou escrever uma linha. Não quero embelezar a tua morte. A tua morte é feia, é estúpida, é canalha, é abjecta, mete nojo, é uma aberração de duas cabeças, dentes podres e mau hálito. Não há poesia na tua morte. A tua morte não existe. É uma daquelas coisas que os jornalistas inventam para encher páginas de jornais.
(Vá, vamos lá embora que a gaja diz que quer falar contigo a sós e ali ao lado está uma multidão. Aqui também começa a estar, mas sempre é mais abrigadinho)
A gente escreve-te, noticia-te, edita-te o melhor que pode e nada. Resistes. Tu que tantas vezes me obrigaste a condensar o mundo em duas linhas tens a suprema lata de resistir, de dizer que não, que não cabes num lead, que nunca te compreenderia com cinco perguntas apenas, que a pirâmide da tua história chega ao céu e jamais se poderia virar do avesso. Eu bem te dizia que o Chico tinha razão: a dor da gente não sai no jornal.
Isto é só para não ficares já para aí armada em parva porque não te escrevi nada para além de três linhas. E vou-te já dizer que no sábado te menti. Disse que ia regar as plantas à tarde, que não te preocupasses com as infiltrações porque já estava sol. Não fui lá no sábado e não voltei a pôr lá os pés e o sol já se foi e a chuva já voltou e não faço a mínima ideia de como estão as infiltrações e se calhar por esta altura as plantinhas já bebiam qualquer coisa. Ontem recebi o relatório a confirmar que a minha mensagem estava pendente e não foi entregue. Vá, ri-te lá, goza comigo e diz que eu nunca soube mentir.
Espero por ti, tardas. Cruzo todas as fontes à espera de um desmentido que não chega. Edito-te. Eu a ti, para ser diferente. Tu notícia, uma e outra vez esse meio sorriso repetido. Revolvo-te as gavetas e os poemas e ainda não te acho. Embrulho o teu atraso numa piada de mau gosto, rio-me de ti. Tenho de me rir de ti. Lembrar que os porcos podem ser cor de rosa, ter asas e voar em círculos atrás do rabo. Que é possível cavar uma multidão com um vómito. Ver um avião dar volta ao mundo sem sair do terraço. Despachas-te? Ni! Eu espero. Como sempre, eu quem espera. Revolvo-te as fotos, não me encontro. Há o Gabriel (já tem sobrancelhas, sabes?) Mas de mim nada. Não restou prova. Dos telhados, das portas entreabertas. Vens ou quê? Deixa lá, eu espero. Vou matando o tempo que já não há. Cuidando das raparigas, para me esquecer. Espero à tua porta. Fico. Cedo a uma música manhosa. Vens? Prometo chamar Jóia a mais ninguém.
Já disse todas as piadas parvas que me poderiam ocorrer e tu ainda não voltaste. ainda não voltaste. sim. sou eu.
O eu aqui de cima tem uma coisa para te dizer: qualquer coisa a ver com cortes de cabelo.
Estávamos lá, duas, e tu também estiveste. Tirámos as duas o telemóvel, olhámos uma para a outra, quem liga à Zé?. E ficámos as três a ouvir, tu não estavas ali, mas estavas lá do outro lado, connosco. À Janela, lembras-te? Como agora, estamos aqui, e tu estás aí do outro lado. Já ligamos.
Hoje vens cá jantar, arrumo-me a mim e à casa num instantinho, faço o peixe no forno, tu vais repetir e dizer que está quase tão bom como os teus cogumelos. Sirvo-te da melhor parte, aquela que tu dizes que é deliciosa e comes de olhos fechados. Podes deter-te pelo meu decote, arrancar-me as calças como te apetecer. Deixas-te escorrer pelo meu peito, ris-te que não quando te pergunto se estou gorda, abraças-me, fazes uma piada de um filme que eu vi e não me lembro, olhas para o poster do Vertigo e perguntas quando vamos à loja comprar o Taxi Driver. Hoje repetimos e não precisas de ficar cá para de manhã.
Foi no cais da manhã, 58 acima, no caminho das horas ao contrário, que os olhos se fecharam à noite.
Do latim urgentia, necessidade imediata, pressa, aperto. O que não admite delongas, iminente, indispensável.
Ainda há pouco deitei fora um pacote de arroz consumir de preferência antes de 12/2006 porque achei que já tinha passado do prazo. Passou-se isto na cozinha onde, colado ao armário de vidro, há um cartão - daqueles que se trazem das bilheteiras de cinema e dos bares - a dizer Fuck 2004. Mas também se podia ter passado uns metros de corredor mais à frente, na sala, onde existe outro da mesma origem, esquecido em cima da mesa. Diz Urgências 2006.
Andamos todos com o tempo às avessas. Ninguém deu por nada. Mas já foi há um ano. Um ano, vinte e dois dias e cento e sessenta e seis posts depois cá continuamos.
Ao cair da noite, salta o muro
Gosto de me rir com ela, em conversas sobre os gajos que nos fizeram mal e os que nos fizeram bem (temos uma queda para os primeiros, acentuada nos últimos tempos, por obra e graça do Dependurado e do Louco com que a Maia gosta de nos presentear semana sim, semana sim). Gosto de me rir com ela, quando ela faz um ar engraçado, empina o nariz para trás e se engasga com o fumo do cigarro (Francamente, que mania de me tirar fotos de perfil, com um nariz horrível), quando fazemos concursos de “a casa mais desarrumada”, com o “pormenor de desarrumação mais decadente” (tenho para mim que, por pudor, nos poupamos mutuamente aos verdadeiros campeões). Quando, de insuspeitas criaturas, nos transformamos em colunista de o sexo e a cidália e nos rimos dos trastes afectivos que a vida nos tem oferecido embrulhados em papel celofane, com um riso genuíno de bonança depois da tempestade (só lhes temos a agradecer, do mais fundo da nossa costela masoquista, por nos deixarem sofrer mais um bocadinho, e o que nós gostamos disso, afinal não os escolhemos ao acaso). E a culpa disto tudo não é da cerveja (criámos imunidade ao álcool que vem no líquido dourado, mas continuamos a bebê-la aos litros e o melhor é mesmo começar a pedi-las sem álcool que, dizem estudos independentes, têm um terço das calorias e não incham a barriga). As duas temos o riso e tudo para ser felizes. E se não somos a culpa é da Maia que, religiosamente todos os domingos, nos dita sentenças de morte para a semana, ao mesmo tempo que nos dá pistas para saber o que os trastes afectivos andam a pensar, se é que pensam, porque já desistimos de lhes perguntar, mas ainda não desistimos de tentar perceber. E a seguir isto pedia mesmo um “os gajos são todos iguais”, mas isso é uma pura injustiça, há uns bem piores que outros. E este post não é sobre eles, é sobre as conversas que nos fazem rir genuinamente quando, por dentro, ainda choramos um bocadinho, rir do alto dos saltos agulha de mulher crescida que não usamos (eles corariam de vergonha se soubessem as coisas que dizemos e que eles nunca ouvirão dos seus botões). Rimos sobretudo de nós. Temos que rir mais.
- Depois de acabarmos ela teve um filho.
Não era um jogo de ténis normal. Em vez de os olhos seguirem a bola da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, esticando o pescoço no mesmo compasso invariável, em movimentos paralelos sem nunca se tocarem, os olhos jogavam descompassados, faziam razias e fugiam. Ora agora olho eu, ora agora olhas tu. O jogo de ténis já durava há mais de meia hora, jogava-se para o empate. Para o embate.
Quebrou-se a cápsula, derramou-se o veneno. O líquido vil já percorre o corpo, atravessa os tecidos, interrompe o normal funcionamento das células para deixar a sua larva de tristeza. E, em vez de o veneno se anular no antídoto da razão, vai alimentando o corpo estranho que, pequeno no seu casulo, ainda sem ser corpo nem ser estranho, engorda ao transformar-se no outro.
Um lugar é um espaço com sentido. Às vezes olho para as paredes e não encontro esse sentido. Sólidas, são irrepreensíveis na tarefa de proteger e guardar do mundo. Nunca verteram uma lágrima para fora, sempre contiveram os gemidos e as gargalhadas para dentro. Não obstante, há uma certa brancura oca que se mantém, teimosa, ao desfilar dos sentidos.
Há uns dias, quando nada era mais real do que o prelúdio de uma onda de calor, pouco antes de a chuva me trazer de novo o meu mundo, descobri que tinha varanda. Gostei do que encontrei para lá dos estores que passam a vida cabisbaixos.
Quando o pastel de nata chegou, já não sobrava muito café na chávena. Como perdeu o contraponto amargo da cafeína, à qual estrategicamente não juntara açúcar, compensou juntando canela. Distraída da medição, o prato fez-se acobreado. O estômago deu mais uma volta sobre o assunto, a primeira dentada foi de olhos fechados. Decidiu mudar de perspectiva e, pelo sim, pelo não, mudou de cadeira. Já ia na terceira volta à mesa e aproveitou a mudança para olhar para a porta, como quem olha só porque é obrigada pelo movimento. Com o cérebro feito em massa cinzenta, pensava com o estômago enjoado pelo açúcar e pontapeado pela cafeína. Desculpa, não acerto com as horas.
Escreveram a quatro mãos, mas não puseram a assinatura. A folha ficou apócrifa. Dada a ser renegada pelos autores, portanto, que a escrita tem destas coisas, evolui, acontece olhar para o que se escreveu antes e não ver nisso mão própria, ainda que ela tenha estado lá, esteve, mas já não está.
Alguém chegou ao Termo quando fazia uma busca por “stands de autocaravanas”. Veio ao sítio certo. Para o caso de voltar, temos a dizer o seguinte: tenham medo, tenham muito medo. Isso, e perguntem pela franquia.
Não gosto do Verão. E ele está a chegar.
Avenida 24 de Julho, um dia destes... Um daqueles relógios que há pelas ruas marca 9.54. Mais à frente, um segundo. 9.51. E, adiante, um terceiro. 9.47. Ainda pensei pedir ao taxista que seguisse sempre em frente. Mas não... Estava atrasada.
Na pasta de memória não há muitos ficheiros em formato .ch. Não sei se pela falta de nariz, se pela falta de lembrança, se por um erro na captação, se por um erro no armazenamento, o olfacto nunca foi gaveta primordial do tempo e nem as sensações algumas vez se colaram aos cheiros como aos sons e às palavras.
Deixei escorrer o tempo e temo que o deserto se tenha entretanto inundado. E que a água tenha levado a história do guia que apontava para a cidade de braço cortado. E as lendas berberes com nome de dromedários de língua áspera a soar à mais bela melodia do deserto. E as mouras encantadas que todos os dias mudavam as tatuagens, do nariz para o queixo, do queixo para o nariz, e serviam chás sempre doces e amargos. E o árabe que se sentava no tapete de uma franja e tocava histórias do seu kasbah e de mil e uma noites. E as leis de uma terra onde um rei um dia disse que ninguém poderia ficar sozinho. E os rios que, num impulso, se levantaram do leito para deixar deitar os oásis. Mas um dia vou contar tudo. Se entretanto o deserto não me atraiçoar.
Se um certo post que mete areia e autocaravanas não for escrito muito - mas muito - rapidamente, adivinhem quem vai escrevê-lo?
Se ninguém escrever um certo post nas próximas 24 horas, adivinhem quem vai escrevê-lo. Hum?
Tinham comprado a carrinha por impulso. Antes de ser cinzenta riscada a laranja gráfico, foi respigo num coma de ferrugem. Hoje, havia uma criança de sardas e tranças a espreitar pela teia de tinta, criando ruído à decoração de “atenção, aqui seguem punks sujos e descompensados, com fortes instintos militares”. A pintura foi pensada para impressionar a estrada, desafio de guerra a cada perigo. A foto da criança foi colada para se deslumbrar ao primeiro instante de cada chegada.
Numa tourada, há sempre um lado por onde começar, um primeiro da fila, um eleito de investida, um espirrar para dentro, um sacar do peito, um agora é que vais ver, um foda-se a doer. Numa tourada, somos todos touros a sonharem-se cavalos.
Um lugar. Onde nenhum. Um tempo para tentar ver. Tentar dizer. Quão pequeno. Quão vasto. Se não ilimitado com que limites. Donde o obscuro. Agora não. Agora que se sabe mais. Agora que não se sabe mais. Sabe-se somente que saída não há. Sem se saber porque se sabe somente que saída não há. Somente entrada. E daí um outro. Um outro lugar onde nenhum. Donde outrora dali regresso nenhum. Não. Lugar nenhum a não ser só um. Nenhum lugar a não ser só um onde lugar nenhum. Donde nunca outrora uma entrada. Dalgum modo uma entrada. Sem um só além. Dali donde não há ali. Por lá onde por lá não há. Ali sem de lá nem dali nem sequer por onde.
Conseguem imaginar o que passa neste momento pela cabeça de João César das Neves? “Deixo de escrever no DN ou não deixo? Escrevo e peço que deixem de me ler? Escrevo de olhos fechados para não ver? Escrevo sem ler, ou leio sem escrever?”
Serve a presente missiva para pedir encarecidamente ao Vaticano que me diga quanto tempo do meu dia posso passar a ler jornais, sem ficar sujeita à condenação eterna. Obrigado.
O padre Vaz Pinto explica que é normal que a Santa Sé elenque os jornais na lista dos pecados de confissão obrigatória. E clarifica que o objectivo não é condenar o uso, mas sim o abuso. Deus vos abençoe, senhor prior. Estou farto que os jornais abusem de mim.
Cerrou os olhos à luz que entrava pela janela e, lânguida do sol, a música começou a dançar, meio sussurro, meio vigília. No mesmo momento, a rádio sintonizou-se na exacta frequência do pensamento. Incrédula, ajustou o volume das orelhas, mudou de stereo para mono, saltou da coluna de dentro para a de fora. Alguém lá em cima estaria seguramente a brincar com ela. E ela hoje não estava para brincadeiras.
Um dia, gostava de conseguir separar o 'eu' que age racionalmente do 'eu' que age instintivamente. Aposto que a acção racional do primeiro seria dar uma grande sova no segundo.
Há sorrisos desvanecedoramente alegres. Sorrisos rasgados. Enternecedores. Prometedores. Acabrunhados. E há sorrisos tristes. Como se o tempo os suspendesse antes de eles se conseguirem desenhar - o tempo pára ali a meio e recua, o próprio tempo desfaz o que o tempo ia fazer. Deve ser por isso que os sorrisos tristes são, muitas vezes, uma questão de tempos. Quando sorrimos (porque sim...) à certeza de que o tempo desfez o que o tempo ia fazer.
Nas redacções assépticas onde hoje é proibido fumar e o chá substituiu os copos de wiskey, faltam homens de casaco de cabedal a cheirar a nicotina, daqueles que cospem no chão e se parecem com o Bogart. Faltam cigarros ao canto da boca e baforadas expelidas ao telefone. Falta o chumbo a correr nas veias e uma certa dose de loucura a passar pelos dedos. Faltam gangsters e não se ouvem tiros. It's all so quiet, it's all so...
Dantes o triângulo era uma forma sem arestas, como outra qualquer. Agora é puro arame farpado. Filho da mãe do Édipo.
Alguém avisa aquele senhor lá em cima, que é suposto ter as chaves do céu e mandar no tempo, que JÁ CHEGOU A PRIMAVERA logo é favor fechar a torneira que já não basta tudo o resto e a malta ainda tem que se levantar de manhã (pronto, ao final da manhã) com uns janelões com muito céu e muito rio e levar com um sem fim de cinzento que nunca mais acaba para onde quer que se olhe. QUERO O MEU AZUL DE VOLTA.
Há um certo reboliço que nos cola costas com costas à cadeira e que nos mantém ali horas, em silêncio, a tentar embalá-lo. A chuva veio, mas não trouxe a calma habitual. Desperdicei cada gota como desperdicei cada minuto de tanto andar para trás e para a frente no tempo. Não quero desperdiçar tempo. Mas não quero aproveitar o tempo se for puro desperdício. Quero e não quero. Gosto tanto de não fazer nada como de fazer o que gosto, mas não gosto dos dias que não sabem a nada. Não gosto do que não sabe a nada. E a memória desse sabor tem atormentando as minhas papilas gustativas, que entretanto abriram uma pequena guerra aos maxilares. Estão costas com costas. Eles, primatas, porque querem agarrar, elas, sapiens, porque temem provar.
(A huge Roman amphitheatre, sparsely attended. REG, FRANCIS, STAN and JUDITH, the People's Front of Judia inteligentia, are seated in the stands. They speak conspiratorially.)
O frontispício do castelo advertia:
Cumpre-se hoje o décimo milésimo ducentésimo vigésimo oitavo dia de desassossego. Tudo junto, dá 28 anos. Parabéns. Esteve inspirado quem se lembrou de te chamar Rotativa.
Ele tinha perdido o rasto. Voltou para trás à procura dos passos na areia. Já não havia passos na areia. Olhou para trás, que no caso era para a frente - nem rasto. Tentou calcar os pés na areia. Andou para a frente, outra vez para trás, agora para o lado. E os olhos não vêem nada, nenhum caminho fica neste chão. A memória dos passos perde-se nele. O andar não faz caminho neste chão. Não há caminho neste chão.
Pensámos que seria boa ideia editar estas almas em fascículos amortalhados. A cada dia quatro números, por tuta e meia com o seu jornal.
Procurámos as respostas. Procure alternativas. Sim Repense a sua abordagem. Pensa numa resposta. É para fazer cedo. O livro diz. Não escrevi este livro. Esta página está em branco. Escreve uma pergunta.
Há leitores que não conseguem ver um livro sem escrever palavras suas pelas páginas.
Hello
Sentimos a dor que conseguimos sentir. A outra, transformamo-la em dormência.
Sexto sentido, ou alucinação? Esfrego os olhos e continuo sem saber se eles estão a olhar para dentro ou para fora. Será que o que vejo sou só eu a ver?
Mas será que nunca mais tenho sossego na vida?, suspirou-me ela. E um insurgente sorriso abafou-lhe o lamento.
Não me preocupa no que penso nem a originalidade nem a coerência. Quanto à primeira, tudo aquilo com que cncordo passa a ser meu - ou já meu era e ainda se me não tinha revelado. A minha originalidade está só, porventura, na digestão que faço. Pelo que respeita à coerência, bem me rala; o que penso ou escrevo hoje é do eu de hoje; o de amanhã é livre de, a partir de hoje, ter sua trajetória própria e sua meta particular. Mas, se quiserem pôr-me assinatura que notário reconheça, dirão que tenho a coerência do incoerente e a originalidade de não me importar nada com isso.
Two can be as bad as one
You Are Most Like Charlotte! |
You are the ultimate romantic idealist. You've been hurt before, but that hasn't caused you to give up on love. If anything, your resolve to fall in love is stronger than ever. And it's this feminine optimism that men find most appealing about you. Romantic prediction: That guy you are seeing (or crushing on)? Could be very serious - if you play your cards right! |
You Are Most Like Carrie! |
Romantic prediction: You'll fall for someone this year... Totally different from any guy you've dated. |
You Are Most Like Miranda! |
While you've had your fair share of romance, men don't come first. Guys are a distant third to your friends and career. And this independence *is* attractive to some men, in measured doses. Remember that if you imagine the best outcome, it might just happen. Romantic prediction: Someone from your past is waiting to reconnect... But you'll have to think of him differently, if you want things to work. |
É isto e apenas isto. Já não foi pouco. Dispenso a esperança de comparecer nos meus pensamentos. Quero-os livres para aceitar o mundo, me perder e surpreender na sua insondável lógica. Quero fazer da vontade coisa nenhuma. Quero não querer. E ser Alberto Caeiro. As coisas são o que são. E já não são pouco.
Caí rotunda, ganhei balanço, despistei-me, andei às voltas e, ainda cambaleante, voltei ao início. De lá se podia dizer que nunca saí, caso não se desse o caso de as rotundas não terem início. Bem sabem os ingleses do que falam quando falam em roundabouts.
Queria aprender o b-a-ba desde o início,
Palavras, palavras, palavras, demasiadas palavras para dizer coisa nenhuma. Haverá, por estes dias, um cantinho onde se faça silêncio?
Por esse rio acima, na tua circunstância, que é metade de tudo o que se pode dizer de ti, tudo depende de estares perante uma paisagem bucólica, ou uma casa de pasto atafulhada. E agora, ponto final ou ponto de interrogação? Dar-te um beijo ou ir ao fundo? Ir sem a certeza de voltar ou ficar na dúvida de um segundo? Ou ficar, de âncora lançada, no preciso instante que antecede a dúvida de um segundo? A olhar para outra margem, ou na força da corrente? A beber o tempo na sede de uma espera sem futuro, só presente. Essa, pelo menos, não é tatuagem. E se o teu presente é o teu futuro? Como saberás para que lado olhar quando precisares de olhar para a frente? O caminho é único, via verde no teu sentido. E se no fundo da rua há um sinal de stop, mas tu esqueceste-te de aprender as regras... Lançaste-te ao caminho no rio, acabaste apeado numa estrada de alcatrão. Quem disse que não se pode andar sobre as ondas? Oh Lázaro! Levanta-te e deita-te uma outra vez. Outra vez!? Outra vez, não há ontens irreparáveis, lembras-te? Mas há mas, acertaste, como há muito tempo ninguém acertava. Há tempo que ninguém ousava acertar, ou talvez fosse que eu quisesse errar. Pois aí está, fosse que eu quisesse errar, e errei, e agora? Quantos aão? Ah? Os erros são meus, o medo de errar também, que devo eu a quem quer que seja que teve a sorte de acertar? Estive a jogar comigo. E consegui perder. Mesmo fazendo batota. Mesmo fazendo batota, perdi no xeque-mate... Como se a morrer na praia.Ou talvez tenha sido antes disso. Talvez tenha ficado por terra nos primeiros quadrados do tabuleiro. Eu, peão que se sonhava rei. A rainha é a peça mais forte deste tabuleiro, a que dita quem ganha e perde este jogo... Se peões fossemos, que de um quintal palácio fizessemos. Aos peões custa-lhes mais, demora mais, têm que percorrer o tabuleiro todo... E então são rainhas, e ganham o jogo. Ou talvez uma torre que se sacrifica pelo rei, em roque. Haverá no mundo melhor coisa que as guitarras dos Clash? (tsssssrttt tsrtt) Gosto das guitarras dos Clash ouvidas por ti, mesmo se a mim pouco me dizem. Diziam. I fought the law, and the law won? E então? Este 'tribunal' está em audiência permanente. A minha lei já me condenou. Sem sequer me ouvir para memória futura. (salto esquizofrénico) Não há memória futura, só memória passada e presente. A não ser que se apresente prova de que o presente é apenas passado de um futuro que há-de ser. Será presente, ou será futuro? Ou é passado que deixará de ser? Ou é só a tua escolha, a do passado, a do presente e a do futuro? Ah? Será chuva, será gente que bate leve, levemente, que não mata mas mói, que arde sem se ver a si mesma, como quem chama por mim? Ah? Respondim.Mas não ouvim. Não percebim... Nem sim, nem não: nim. Nim., não! Nim... ponto, vírgula, não... câmbio. Ponto vírgula! não reticências? Que tal ponto de exclamção, ponto final. No dead line? Não. De que serve querer fazer de uma linha morta linha de chegada? Há linhas de chegada vivas? Há o caminho. Viva! Há o caminho. "Viva!" Quando não há linha de chegada... haverá linha de partida? Se quiseres entrar na corrida e correr. Ir andando até ser. Ou deixar de ser. Mesmo que sem querer. Devagarinho acontecer... e desancontecer. E nunca perceber: eis a questão. E perceber? E querer fazer acontecer, não percebendo o que já percebemos? O que estraga tudo é o mas, lembras-te? Lembras-te se pode alguém ser quem não é? Haverá ciência menos exacta que a matemática? Há a lógica! E a química. Mesmo que a física seja mais certa... Só uma uma ciência errada. A geografia. Duas. A história também. As previsões meteorológicas vão mudando com o Tempo. Ou será que é o Tempo que vai mudando com elas? Será que é ela que mexe o chocalho, ou o chocalho é que mexe com ela. Samba no escuro? De qualquer maneira, o escuro está sempre ali. Para lá da porta que fecha esta sala onde acendi uma luz. Apagou-se. Mau contacto. Dança? Ah, peço imensa desculpa por atrapalhar o seu passo. Ou descansa? Não sabe dançar esta dança? A música é rica em melodia. Ainda que coxa de ritmo e pobre de harmonia. E, no entanto, gosto da música. Não estou já a dançar? Ou será o tecto a andar à roda? Seria uma sorte. É uma sorte. À roda da sorte. Roda Terra, ou Sorte Sol? Lua e noite. Sul. E sueste, que é para lá o caminho. Eixo do mal. Os ventos estão sempre a mudar. Mudam-se os ventos, mudam-se as vontades. Todo o vento é composto de mudança, troquemos as voltas que inda o furacao é uma criança de oito meses na escala de Richter. Alterações climáticas? O efeito é de estufa e estafa, por isso te passo a estafeta. O efeito é de estufa, de preferência com um fiozinho de azeite e umas batatinhas a acompanhar. Gastronomia?! Não sabem que não percebo nada disso? A minha ambição é frugal, pouco mais me apetece que um prato raso. De tripas, à tua moda. Quem sobe, quem desce? Disparate, qual prato raso?! Se o caldo até já entornou. Há sempre o café. Antes da partida.
Ponto final. Ponto de interrogação. Ponto de exclamação. Reticências. Parênteses. Ponto de interrogação.
Quem disse que na terra dos sonhos não se morre, nem há funerais?
Abrir a caixa do correio é sempre um mistério. Quando esperamos encontrar o recibo a certificar que o feudo do mês já conta, acontece-nos receber a carta certa. As palavras são as certas, as vírgulas estão no lugar certo, os parágrafos fazem o desenho certo. Apenas o destinatário está errado.
Quem vai à guerra dá e leva, ouvi-te. Por dentro, sorri para a irresistível luz dessa certeza. Por fora, armei a pose avisada e a velha voz do siso, qual grilo de abas compridas que lança o aviso de quem teu amigo é : olha que quem se faz a essa guerra dá tudo o que tem, mas raramente leva em troca o que quer. Bem sei, consentiste: mas não me apetece perder sem ir à luta. Engoli em seco. Que pode a razão contra tamanha poesia?
Não sei soletrar os símbolos químicos da tua poção mágica que me torna reagente de mil átomos. Imagino-os com muitos w, y e z, cruzados com letras do alfabeto grego e elevados ao expoente de caracteres que não existem nos teclados à venda na Fnac.
Ardem-me os olhos de tanto ver e deixar de ver o ? dos quatro pontos de exclamação. “O mas é que estraga tudo”. Acertaste. No mas e em tudo o resto.
O ar deixou de suster o corpo e o corpo, tonto, já não tem nada a que se amparar. Não há rede, só vertigem. Os braços cederam à gravidade e as paredes do estômago contorceram-se nas cordas do trapézio. Bem sei que o pano está fechado, mas por favor não acendas a luz.
Entrego a minha voz
Letra: David Mourão Ferreira
Descia pela nuca, dedos enrolados nas enroladas ideias do seu cabelo. Facto fabricado, pelo que consta. Depois o nariz, emerso, comprava no mercado negro dos seus caracóis. As pernas subiam as escadas 14 a 14 e, enquanto isso, os olhos negociavam tudo sobre o burro e o cigano. A pele sussurrava tu vendes, eu compro, as mãos apertavam-se em negócio fechado.
A certa altura, surgiu-lhe a tosse. Incomodava, mas não doía, desesperava, mas não sufocava, expelia, mas não libertava, preocupava mas não paralisava. Abriu guerra ao ar. E não se sabe quem, hasteando a bandeira, atirou primeiro. A bala surgiu desconhece-se de que lado. Não há ideia de quem, derradeiro, cairá ao chão.
"Tua será também a certeza de que o tempo se esquece dos seus ontens e de que nada é irreparável."
Pode ser uma miragem, mas ainda não agradeci à miragem o facto de me fazer sentir viva.
Todas as noites o sino toca as doze badaladas e, calado o eco da última, aquele perfil de luz irrompe pelas janelas já transformado em escuridão. Imagino a Cinderela a descer aquelas escadarias, mas a minha Cinderela não tem redenção. Perdido o sapato, perdido o príncipe, perdida a silhueta da carruagem na escuridão: naquele breu não há sapato nem príncipe nem maneira de sair dali nem de ali ser encontrado. Todas as noites são um desencontro, todas as noites é assim, o meu príncipe e a minha princesa são irmãos de Prometeu.
Há 20 anos que me rio por ti, às vezes de ti, sempre contigo. És o sorriso, sei-o de ciência certa, que manterei SEMPRE.
Há uma parte de ti que é só minha. Entrou por uma fresta mal calafetada, chegou-se à lareira e segredou-me histórias de cidades invisíveis junto ao mar. Prometeu-me que um dia se sumirá na maresia, antes que a possas conhecer. A certidão de óbito já está escrita - morte por afogamento. Na realidade.
O pretérito conjuga-se no imperfeito, que era para ter sido tudo o que não foi. O futuro joga-se na suposição do condicional, que seria se alguma vez viesse a ser. O presente agarra-se no gerúndio para que ao menos vá sendo.
Haverá em todo o mundo melhor coisa do que as guitarras dos Clash?
Lembro-me todos os dias do que tem de ser feito. Esqueço-me todos os dias de o fazer.
O sopro fez-se arrepio e o arrepio fez-se vertigem. Desde que a tarde se pusera que não não havia sopros-vertigem.
O senhor sabe destas coisas e garantiu-me que só pode bem improvisar quem perceber a matemática do acaso. Disciplina e concentração, receitou-me. Sempre pensei que não, retorqui eu: achava que isso de pouco valia, que o tal acaso era espécie de cavalo cor de vento que só por sorte se consegue montar. Não, insistiu o sábio, que só corre livre quem sabe escolher a própria albarda.
Em cada pequeno gesto somos generosos ou egoístas. Mas vivemos mal com a generosidade e não aguentamos o egoísmo.
Tenho para mim que só conseguimos transpor a barreira da pele e ver para o lado de dentro quando encontramos à superfície manchas que nos são familiares. Dos outros, só percebemos os mistérios que também são nossos. Em tudo o resto, estamos inefável e dramaticamente sós. Com uma pele opaca a isolar-nos.
Acabaram as autárquicas!!!!!!!!
Tu não existes. Tu não existes. Tu não existes. E eu sei.
... aos (por esta altura esverdeados) membros deste blogue.
Para o Dicionário das Palavras-Silêncio do respirar o mesmo ar
906 a dividir por dois dá 453, dizes tu. Não dá. Por mais voltas que dê às contas, dá-me invariavelmente zero.
Que nome se dá aos dias para os quais a expressão "abaixo de cão" é manifestamente um eufemismo?
"Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza da minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele."
Gostava de ter um satélite para ver, em perspectiva, até onde se estendem os ramos da árvore genealógica do acaso.
Ele disse que o tempo surgia do futuro, que ainda não existe, passava no presente, que não tem duração, e se sumia no passado, que deixou de existir.
Como uma bolsa. Abrir o fecho, ouvir o srrrrrrt, meter a mão, ordenar tudo o que está fora de sítio, deitar fora tudo o que está fora de prazo. Espanar o pó, varrer o chão, iluminar os cantos escuros. E depois... srrrrrrt. Respirar fundo. Dentro do peito, o peito já não dói.
Recomeça
... perguntava-se no DN de 24 de Agosto de 1947.
Ontem, um amigo meu utilizou a expressão "estava na manhã do mundo". Gostei. Um dia também quero estar aí: quando tudo começa, antes de tudo começar. Depois do entardecer.
Disse-lhe que não. "Não te preocupes. Não tenho vertigens." A barreira ergue-se alta e impede a atracção pelo abismo. E, em bicos dos pés, o salto jamais teria piada.
Porque é Agosto, também eu me lembrei de invocar essa ilustre personagem e de prestar tributo ao seu inestimável trabalho. Escrevi-o logo nos primeiros dias deste mês de canícula, numa outra tribuna sem plateia como esta. Agora que o seu nome volta a inspirar discursos e memórias, plagio sem pudor as ideias que me tomaram de assalto num outro serão de devaneio estival.
Um dia destes chegou-me às mãos um CD-rom da Protecção Civil de Lisboa que dá pelo título "Os Sismos e Gestão da Emergência". O tema interessa-me - acho que, mais dia menos dia, isto vai mesmo tremer por todos os lados - e vai daí fui ver o CD-rom, à procura de coisas como o grau de perigo do meu bairro, o que se deve e não deve fazer num sismo... Suponho que esteja lá, mas ainda não encontrei. O que encontrei foram excertos (muitos) de música clássica. Fica a devida vénia à Protecção Civil. Nada como ter uma banda sonora adequada enquanto a casa nos cai em cima.
O movimento nacionalista Ergue-te pela tua Terra anunciou ontem que vai promover um abaixo-assinado de protesto contra Jorge Sampaio. Na origem da iniciativa está a decisão do Presidente da República de condecorar a banda irlandesa U2 com a Ordem da Liberdade. Os ET não contestam a homenagem em si – “o conjunto é um bom conjunto, apesar de cantar em inglês” -, mas afirmam que peca por defeito.
No início do ano, dizia o meu horóscopo que 2005 ia ser de arromba – tudo o que podia correr bem, ia correr melhor, tudo o que podia correr mal... se bem me lembro, não havia nada que pudesse correr mal. Como os astros devem andar distraídos, queria lembrar que têm algumas tarefas em atraso, e já agora que não se deve deixar para amanhã o que se pode fazer hoje.
Depois de várias reprimendas, uma ameaça velada e outra descarada de expulsão... com licença, vou entrando...
Falta-me a vida para o que faço e sobra-me a vida sempre que lhe quero lançar a mão.
O que pode teclar um dedo a quem falta carne por dentro e sobra gaze por fora?
Mesmo quando estão 40 graus à sombra, a chuva cheira a lareira e a meia-luz. Submerge o mundo numa paz outonal, a ilha das ilhas no arquipélago da calma conhecida. Mas, neste tempo, o Outono foi contaminado por laivos de Verão e inquietude. Daquele tipo de Verão em que tudo arde, acusando o toque do mais leve cheiro a faísca. Por esta altura, a chuva não é mais do que um contentor de oxigénio. O pirómano por excelência.
Em termos pragmáticos, consta que somos o que comunicamos. Há dias em que o verbo me atraiçoa de tal forma que, seguindo esse princípio, me acontece sentir-me envergonhado da pobreza que me define.