29.7.06

Normalmente numa esplanada, a tilintar de frio

Gosto de me rir com ela, em conversas sobre os gajos que nos fizeram mal e os que nos fizeram bem (temos uma queda para os primeiros, acentuada nos últimos tempos, por obra e graça do Dependurado e do Louco com que a Maia gosta de nos presentear semana sim, semana sim). Gosto de me rir com ela, quando ela faz um ar engraçado, empina o nariz para trás e se engasga com o fumo do cigarro (Francamente, que mania de me tirar fotos de perfil, com um nariz horrível), quando fazemos concursos de “a casa mais desarrumada”, com o “pormenor de desarrumação mais decadente” (tenho para mim que, por pudor, nos poupamos mutuamente aos verdadeiros campeões). Quando, de insuspeitas criaturas, nos transformamos em colunista de o sexo e a cidália e nos rimos dos trastes afectivos que a vida nos tem oferecido embrulhados em papel celofane, com um riso genuíno de bonança depois da tempestade (só lhes temos a agradecer, do mais fundo da nossa costela masoquista, por nos deixarem sofrer mais um bocadinho, e o que nós gostamos disso, afinal não os escolhemos ao acaso). E a culpa disto tudo não é da cerveja (criámos imunidade ao álcool que vem no líquido dourado, mas continuamos a bebê-la aos litros e o melhor é mesmo começar a pedi-las sem álcool que, dizem estudos independentes, têm um terço das calorias e não incham a barriga). As duas temos o riso e tudo para ser felizes. E se não somos a culpa é da Maia que, religiosamente todos os domingos, nos dita sentenças de morte para a semana, ao mesmo tempo que nos dá pistas para saber o que os trastes afectivos andam a pensar, se é que pensam, porque já desistimos de lhes perguntar, mas ainda não desistimos de tentar perceber. E a seguir isto pedia mesmo um “os gajos são todos iguais”, mas isso é uma pura injustiça, há uns bem piores que outros. E este post não é sobre eles, é sobre as conversas que nos fazem rir genuinamente quando, por dentro, ainda choramos um bocadinho, rir do alto dos saltos agulha de mulher crescida que não usamos (eles corariam de vergonha se soubessem as coisas que dizemos e que eles nunca ouvirão dos seus botões). Rimos sobretudo de nós. Temos que rir mais.

(existe uma pessoa que, se lesse este post, teria muito a dizer sobre sapatos, a sorte é que não conhece este pasquim virtual. Um grande bem haja para ele)

27.7.06

Beco sem saída



Há dias assim.

24.7.06

Eu eu de ti, por estas e tantas outras palavras certas

- Depois de acabarmos ela teve um filho.
- Hum. Mas ainda gostas dela?
- Gosto, claro. Mas também ainda gosto de ti.

12.7.06

ténis sem rede

Não era um jogo de ténis normal. Em vez de os olhos seguirem a bola da esquerda para a direita, da direita para a esquerda, esticando o pescoço no mesmo compasso invariável, em movimentos paralelos sem nunca se tocarem, os olhos jogavam descompassados, faziam razias e fugiam. Ora agora olho eu, ora agora olhas tu. O jogo de ténis já durava há mais de meia hora, jogava-se para o empate. Para o embate.
Ele não passava da mesma frase, já a lera três vezes sem lhe tirar o sentido. Ela olhava o mar ao fundo - Viro-me à terceira onda que passar a linha da areia molhada. Ele virou finalmente a página, largando a revista em cima da mesa, com as folhas a lutar com o vento. Ela pediu uma imperial. Ele encostou-se na cadeira. Ela fingiu que não percebeu e sacou do moleskine. Ele pousou para a descrição que ia nascendo na folha quadriculada. Ela parou de escrever. Ele parou de pousar. Ela levantou os olhos e sorriu. Ele levantou as pernas e arrastou a cadeira para a sua mesa.

10.7.06

Caterpillar

Quebrou-se a cápsula, derramou-se o veneno. O líquido vil já percorre o corpo, atravessa os tecidos, interrompe o normal funcionamento das células para deixar a sua larva de tristeza. E, em vez de o veneno se anular no antídoto da razão, vai alimentando o corpo estranho que, pequeno no seu casulo, ainda sem ser corpo nem ser estranho, engorda ao transformar-se no outro.
Deixou o casulo vazio, cordão umbilical cortado, ganhou asas, ganhará fronteiras. E eu sei que isso não é um fim, é um nascimento, dois corpos ganham vida autónoma, podem largar e voltar a tocar-se, que a pele fronteira que separa é a pele ponto de contacto que une. Queria deixar-te ir. Mas a minha mão não me obedece. Contrai-se pelo veneno, fecha-se numa rigidez dolorosa. Não és tu, sou eu, este é o meu corpo e o meu veneno, derramado em mim. Sempre foi assim. E eu não sei ser de outra forma.

2.7.06

Lugar

Um lugar é um espaço com sentido. Às vezes olho para as paredes e não encontro esse sentido. Sólidas, são irrepreensíveis na tarefa de proteger e guardar do mundo. Nunca verteram uma lágrima para fora, sempre contiveram os gemidos e as gargalhadas para dentro. Não obstante, há uma certa brancura oca que se mantém, teimosa, ao desfilar dos sentidos.
A verdade é que a minha casa nunca me perdoou o facto de me ter mudado sem um grão de sal. Não tens sal? Não sabes que nunca se muda para uma casa nova sem sal, que dá azar? Já o tinha sentido antes, mas foi num dos primeiros jantares improvisados que fiquei a saber o motivo. Tinha uma casa sem sal. A culpa era toda minha e tudo poderia ter sido diferente com uma passagem precavida ao Pingo Doce. Até hoje sinto que lhe falta o sal primordial, que nem todo o incenso do mundo consegue esconder.