23.4.06
19.4.06
Largada
Numa tourada, há sempre um lado por onde começar, um primeiro da fila, um eleito de investida, um espirrar para dentro, um sacar do peito, um agora é que vais ver, um foda-se a doer. Numa tourada, somos todos touros a sonharem-se cavalos.
16.4.06
Ali sem de lá nem dali
Um lugar. Onde nenhum. Um tempo para tentar ver. Tentar dizer. Quão pequeno. Quão vasto. Se não ilimitado com que limites. Donde o obscuro. Agora não. Agora que se sabe mais. Agora que não se sabe mais. Sabe-se somente que saída não há. Sem se saber porque se sabe somente que saída não há. Somente entrada. E daí um outro. Um outro lugar onde nenhum. Donde outrora dali regresso nenhum. Não. Lugar nenhum a não ser só um. Nenhum lugar a não ser só um onde lugar nenhum. Donde nunca outrora uma entrada. Dalgum modo uma entrada. Sem um só além. Dali donde não há ali. Por lá onde por lá não há. Ali sem de lá nem dali nem sequer por onde.
Samuel Beckett
(Obrigado CM. Mais uma vez.)
14.4.06
Redenção
Conseguem imaginar o que passa neste momento pela cabeça de João César das Neves? “Deixo de escrever no DN ou não deixo? Escrevo e peço que deixem de me ler? Escrevo de olhos fechados para não ver? Escrevo sem ler, ou leio sem escrever?”
Chico Buarque pensou em tudo. E também nisto.
Não existe pecado
do lado de baixo do Equador
vamos fazer um pecado, rasgado
suado a todo o vapor
me deixa ser seu escracho
capacho, teu cacho
um riacho de amor
quando é lição de esculacho
olha aí, sai de baixo
que eu sou professor
Deixa a tristeza para lá.
Vem comer, me jantar
sarapatel, caruru, tucupi, tacacá
vê se me usa, me abusa, lambuza
que a tua cafuza
não pode esperar
deixa a tristeza para lá
vem comer, me jantar
sarapatel, caruru, tucupi, tacacá
vê se se esgota, me bota na mesa
que a tua holandesa
não pode esperar
não existe pecado do lado de
baixo do Equador
vamos fazer um pecado, rasgado
suado a todo o vapor
me deixa ser seu escracho
capacho, teu cacho
um riacho de amor
quando é missão de esculacho
olha aí, sai de baixo
eu sou embaixador
Perdoai-lhes, Senhor...
Serve a presente missiva para pedir encarecidamente ao Vaticano que me diga quanto tempo do meu dia posso passar a ler jornais, sem ficar sujeita à condenação eterna. Obrigado.
13.4.06
Aleluia
O padre Vaz Pinto explica que é normal que a Santa Sé elenque os jornais na lista dos pecados de confissão obrigatória. E clarifica que o objectivo não é condenar o uso, mas sim o abuso. Deus vos abençoe, senhor prior. Estou farto que os jornais abusem de mim.
12.4.06
11.4.06
Serviço a crédito
Cerrou os olhos à luz que entrava pela janela e, lânguida do sol, a música começou a dançar, meio sussurro, meio vigília. No mesmo momento, a rádio sintonizou-se na exacta frequência do pensamento. Incrédula, ajustou o volume das orelhas, mudou de stereo para mono, saltou da coluna de dentro para a de fora. Alguém lá em cima estaria seguramente a brincar com ela. E ela hoje não estava para brincadeiras.
- Boa tarde, era para o raio que o parta, perdão, Rodrigues Sampaio.
7.4.06
Teoria da Razão Pura
Um dia, gostava de conseguir separar o 'eu' que age racionalmente do 'eu' que age instintivamente. Aposto que a acção racional do primeiro seria dar uma grande sova no segundo.
6.4.06
5.4.06
Uma questão de tempos
Há sorrisos desvanecedoramente alegres. Sorrisos rasgados. Enternecedores. Prometedores. Acabrunhados. E há sorrisos tristes. Como se o tempo os suspendesse antes de eles se conseguirem desenhar - o tempo pára ali a meio e recua, o próprio tempo desfaz o que o tempo ia fazer. Deve ser por isso que os sorrisos tristes são, muitas vezes, uma questão de tempos. Quando sorrimos (porque sim...) à certeza de que o tempo desfez o que o tempo ia fazer.