20.9.05

Palavra-silêncio

Para o Dicionário das Palavras-Silêncio do respirar o mesmo ar

Letra a, de Abandono

Estas não são linhas sobre o abandono sentido - aquele que é chorado por duas pessoas, cada uma para seu lado. Nem sobre a ausência - um lugar que existe mas que está por preencher pelo seu proprietário, uma cadeira à mesa guardada para alguém que não chega, a falta do que está noutra parte. Estas são linhas sobre outra coisa. Sobre o deixarmos de existir para alguém. Imaginarmo-nos no outro e só haver vazio. Sermos o silêncio, a negação, o pensamento infértil, o não pensamento. Aí longe, lugar que eu imagino mas onde não estou, não há lugar para mim e, de mim, nem rasto nem falta. Nessa galáxia, fui estrela cadente que se sumiu. Haverá em vida algo mais parecido com a morte? Morremos-lhes.
Se as relações humanas têm uma ferida narcísica, imagino que seja esta. É o nosso sentido de mortalidade naquilo que somos com os outros. E, também aqui, como saber de antemão quando chega a nossa hora?

Moínha




Assentei praça, criei pança, tornei-me Sancho. Há tanto tempo que não luto que os meus moinhos já troçam. De galope para trote, de cavalo para burro, que de burro já não passo. A passo, a pé, vagarando, tantas vezes sentado, umas poucas andando, outras tantas agachado. Que raio! Foi-se?! Um coice. Novo mote, outra divisa: sacudir o capote, que de água parada ninguém precisa. Há que ter apego ao desassossego. Deitar contas à vida, pedir meças ao tempo. E investir de cabeça. Outra vez.

Problema matemático

906 a dividir por dois dá 453, dizes tu. Não dá. Por mais voltas que dê às contas, dá-me invariavelmente zero.

Pergunta

Que nome se dá aos dias para os quais a expressão "abaixo de cão" é manifestamente um eufemismo?

12.9.05

No livro da palavra de cinco 's'

"Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza da minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele."

Bernardo Soares

Na árvore genealógica do acaso

Gostava de ter um satélite para ver, em perspectiva, até onde se estendem os ramos da árvore genealógica do acaso.

10.9.05

Conjugações

Ele disse que o tempo surgia do futuro, que ainda não existe, passava no presente, que não tem duração, e se sumia no passado, que deixou de existir.
Ela respondeu que tudo o que existe existe no pretérito.
Para ela, ele foi. Para ele, ela já era.

8.9.05

Estado de sítio

Como uma bolsa. Abrir o fecho, ouvir o srrrrrrt, meter a mão, ordenar tudo o que está fora de sítio, deitar fora tudo o que está fora de prazo. Espanar o pó, varrer o chão, iluminar os cantos escuros. E depois... srrrrrrt. Respirar fundo. Dentro do peito, o peito já não dói.

4.9.05

Pé após pé

O caminho faz-se caminhando. O caminho faz-se caminhando. O caminho faz-se caminhando. O caminho faz-se caminhando. O caminho faz-se caminhando. O caminho faz-se caminhando. O caminho faz-se caminhando. O caminho faz-se caminhando. O caminho faz-se caminhando. O caminho faz-se caminhando.