Só faltou isto
Entrego a minha voz
ao coração do vento
e quanto mais água
dos meus olhos corre
mais fogo acendo
Eu não me entendo
Eu não me entendo
Mas atendendo ao resto, a malta perdoa...
Entrego a minha voz
Letra: David Mourão Ferreira
Descia pela nuca, dedos enrolados nas enroladas ideias do seu cabelo. Facto fabricado, pelo que consta. Depois o nariz, emerso, comprava no mercado negro dos seus caracóis. As pernas subiam as escadas 14 a 14 e, enquanto isso, os olhos negociavam tudo sobre o burro e o cigano. A pele sussurrava tu vendes, eu compro, as mãos apertavam-se em negócio fechado.
A certa altura, surgiu-lhe a tosse. Incomodava, mas não doía, desesperava, mas não sufocava, expelia, mas não libertava, preocupava mas não paralisava. Abriu guerra ao ar. E não se sabe quem, hasteando a bandeira, atirou primeiro. A bala surgiu desconhece-se de que lado. Não há ideia de quem, derradeiro, cairá ao chão.
"Tua será também a certeza de que o tempo se esquece dos seus ontens e de que nada é irreparável."
Pode ser uma miragem, mas ainda não agradeci à miragem o facto de me fazer sentir viva.
Todas as noites o sino toca as doze badaladas e, calado o eco da última, aquele perfil de luz irrompe pelas janelas já transformado em escuridão. Imagino a Cinderela a descer aquelas escadarias, mas a minha Cinderela não tem redenção. Perdido o sapato, perdido o príncipe, perdida a silhueta da carruagem na escuridão: naquele breu não há sapato nem príncipe nem maneira de sair dali nem de ali ser encontrado. Todas as noites são um desencontro, todas as noites é assim, o meu príncipe e a minha princesa são irmãos de Prometeu.
Há 20 anos que me rio por ti, às vezes de ti, sempre contigo. És o sorriso, sei-o de ciência certa, que manterei SEMPRE.
Há uma parte de ti que é só minha. Entrou por uma fresta mal calafetada, chegou-se à lareira e segredou-me histórias de cidades invisíveis junto ao mar. Prometeu-me que um dia se sumirá na maresia, antes que a possas conhecer. A certidão de óbito já está escrita - morte por afogamento. Na realidade.
O pretérito conjuga-se no imperfeito, que era para ter sido tudo o que não foi. O futuro joga-se na suposição do condicional, que seria se alguma vez viesse a ser. O presente agarra-se no gerúndio para que ao menos vá sendo.
Haverá em todo o mundo melhor coisa do que as guitarras dos Clash?