A mestre-sala
Se fechar os olhos, é como se os abrisse. Sentada no chão de tábua corrida, o Morelenbaum/Sakamoto a misturar a bossa nova, cuidado com a cinza no tapete, esta noite já se entornou uma lata de cerveja e só há mais duas no frigorífico, faço contas às horas e percebo que terei de ir de manhã rapidamente a casa tomar um banho antes do trabalho. Desceste para ir buscar o papel de arroz e a roliça. No seu altar, o Mefistófeles admira o espectáculo das 37 velas acesas. Alguém anda com uma vassoura de um lado para o outro e alguém já se apagou no sofá. Na tua sala, todos temos o nosso canto preferido para adormecer até ao dia seguinte, o nosso espaço com sentido onde acabamos as noites quando já não há nada aberto para o teu “vá lá, só mais uma cerveja” e umas entrelinhas de conversa. Lá em baixo, na cozinha cinzenta, jantou-se as melhores torradinhas e assim inventámos uma nova medida de contar afectos. Qual é o jogo de hoje no terraço – e, neste momento, naquela direcção, está… a… Do outro lado do rio, há uns senhores ainda acordados, as estrelas, mais rápidas que os barcos, passam com os aviões sobre o panteão aceso. Um ano depois, se fechar os olhos, é como se os abrisse.
Na esplanada, alguém continuou a beber a última green na única mesa ainda por arrumar. Na porta inox em frente ao indiano, alguém comprou pão acabado de sair da fornalha quente das seis da manhã. No terraço, alguém ficou acordado a ver as luzes apagarem-se, uma a uma, do outro lado do rio. A esplanada, o terraço e o rio continuam na fatalidade dos dias que se seguem. Mas já não o fazem, rima a rima, na magia do teu poema. Porque é só teu. Como sempre, como dantes.
(em construção)